sábado, 12 de setembro de 2009

A vaca

A sabedoria popular credita um valor irrefletido àquilo que se considera um ato virtuoso. Ninguém questionou a bondade de seu Nassico quando, ali pelo fim dos setenta, ele presenteou seu Eucaris com uma majestosa holandesa digna de medalha e com tetas estufadas.

Os tempos não andavam fáceis para a família de Eucaris, e Nassico, homem de posses e de vacas leiteiras, honrou a antiga amizade com a malhada. Ela havia de ser útil à família. Desde que bem alimentada o leite seria farto. Naqueles tempos a família já deixara o campo e até o centro da cidade para trás. Já viviam no Bairro Santos Dumont. Bairro novo e próximo ao aeroporto. Uma rua separava o bairro da rival Vila Capão do Angico. Lugar de má fama e que devia ser evitado pelos virtuosos do Santos Dumont. Andando mais um pouco havia lotes de terrenos baldios crivados de capim. Pasto para a vaca havia. Bastava alguém levá-la diariamente a esses lugares de comida abundante e gratuita.

A família, na época, não era mais tão numerosa. A mãe, o pai, uma filha e um filho - o piá da casa. Não demorou para a tarefa diária do leva e traz da vaca se tornar a responsabilidade do guri. Quisera o pai que ele também fosse quem ordenhasse a vaca das virtudes. O guri era um desastre na arte leiteira e não extraía mais do que uma caneca das mesmas tetas que ofereciam dois ou três tarros por dia. Levar e trazer o animal não parecia exigir tanto e continuou sendo a serventia do guri com pouco mais de dez anos.

Logo nos primeiros dias já se percebeu que deixar a vaca pela manhã e buscá-la ao final da tarde não era algo tão preciso. A vaca, de saída, embestou de querer voltar para o antigo lar e sumiu. No outro dia o Nassico avisou que o bicho andava por lá. Foi, foi, foi até que a vaca cansou de voltar pra casa e entendeu que sua vidinha de vaca não seria mais por lá e sim pelos campinhos dos arrebaldes do Alegrete.

O piá também se rendeu a rotina do levar e trazer. Imaginava, sem orgulho ou motivação, que apelidos já não corriam pelas línguas desocupadas da vizinhança. O “guri da vaca”, o “piá da vaca”.

Sentia pena de si. Todos os dias, seguiam ele, a soga e a vaca gigantesca rumo aos terrenos baldios. Nada superava, no entanto, o assombro diário de buscar a malhada ao cair da tarde. A volta da escola nunca era o final do dia. O final do dia era o resgate daquela deusa indiana na campanha. Ela ainda estaria no mesmo lugar? Caso não, pra onde a infeliz teria se bandeado? Estaria vagando pelas ruas do infame Capão do Angico? Teria sentido saudade da velha casa e atravessado a cidade?

A vaca e seus ardis era uma surpresa a cada dia. Há uma época do ano na qual as flores amarelas da maria-mole tomam os campos. Tudo fica amarelo e coberto por uma vegetação com quase um metro de altura. Houve vários dias que a vaca cansada de pastar e de perambular em meio às flores decidia deitar-se em meio ao campo florido. Ela desaparecia e para achá-la só havia um jeito: ziguezaguear e campear até tropeçar no animal. Havia dias que isso era rápido. Noutros virava uma agonia a cada esmaecida do sol. O dia tornava-se noite e nada da vaca. Havia os dias que a vaca emburrava e decidia não levantar sua quase uma tonelada de virtude. Ficava, o impávido colosso, a ruminar sua imobilidade bovina. Não adiantava puxar a cordinha, dar pontapés, chacoalhar os chifres. Era necessário esperar alguma boa vontade do animal.

Assim foi durante muito tempo. Uma desventura a cada dia. Copos e copos de leite eram a recompensa para o constrangimento diário de carregar a vaca pra lá e pra cá. Era a sua parcela na luta diária da família. Nas lembranças que guardam os dias sem fim da vaca incerta, o heroísmo e a dignidade não estão presentes. Há aquela idéia fixa e precisa: eu era o “guri da vaca”.


(história baseada em relatos da vida dos outros)

Um comentário:

Márcia disse...

Na minha criação imaginária era tu o guri da Vaca.. agora n tem mais como mudar... rsrs