sábado, 3 de dezembro de 2011

Um homem cheio de esperanças

As três voltas ao redor da quadra não faziam parte do plano dramático e tão bem ensaiado durante os últimos dois dias. Estacionar muito distante dali poderia, no entanto, enfraquecer a cena. Uma vaga, enfim, a meia quadra do palco se abre como uma cortina. Ele poderá sair da escuridão da coxia. Observa-se no espelho um instante antes de abrir a porta e nota o cenho convicto. A maquiagem da dor continuava ainda bem posta. Abre o porta-malas e tira a bagagem. Caminha seguro e arrasta, sobre rodinhas barulhentas, dois pesos imensos. Um deles envolto por uma imitação de couro marrom e a outra num rosa infantil e sintético. Ele sabe o custo, em cada centavo e segundo, daqueles volumes.
A grande hora: ele abre as portas do escritório com um dos pés e joga as duas malas diante dela. A frase que havia pensado dizer na hora acaba não saindo e ela ouve algo que parece ser “fiquem juntos e sumam”. Os colegas ao redor ficam meio perplexos. Ninguém, de imediato, comenta. Alguns se olham e um ou dois desses olhares dizem um “eu sabia que isso ia acontecer”.
De volta ao carro, lembra de quantos presentes dera a ela, de quantos caprichos havia dependido naqueles últimos sete anos. Seria duro esquecê-la. Ela era linda e, sabia agora, por isso havia se achado no direito de roubar-lhe tudo. Roubara-lhe até a sua frase final: “sua puta, ele vai te abandonar e tu vai acabar sozinha”. Não conseguiu dizer e tampouco acreditou no que disse e no que queria dizer.
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Ela trabalhou no escritório por mais uns meses. Agia de forma altiva e cheia de si. Agora não trabalha mais no escritório. Abriu uma loja e vive com seu namorado. Fala-se que vivem apaixonados.
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O homem era só esperança. Exibia aquele sorriso sábio de quem sabe tudo sobre o mundo e de quem possui um segredo que o torna intocável. Ele acreditava que levitava. Dois anos de uma alegria que só não era maior porque, ele tinha certeza disso, o melhor estava por vir. Ele viveria com o seu amor, o amor redentor de uma vida tediosa e cheia de coisas que o desagradavam. A vida de um homem que vê a idade se transformando em algo pouco sutil nas suas palavras, traços e ocupações. Ela era linda e dava-lhe tudo o que o fazia acreditar que a Terra era mesmo o lugar no qual os homens viviam o nirvana da alma. Nos últimos meses o felizardo pusera em marcha um projeto audacioso: uma nova casa. A casa seguia sob a sua supervisão e cada acabamento, aberturas e cores eram decididos entre lençóis, presentinhos e promoções.
Chegaria o dia que a vida de segredos acabaria. Ele estava preparado para a rejeição da família, dos colegas. Ele, afinal, levitava. E o dia havia chegado. Ele viu quando o sujeito das malas entrou no escritório e ficou aflito e esperançoso. As malas jogadas, os olhos furiosos, a frase ríspida que ele não conseguiu decifrar e a saída brusca porta a fora não chegavam a ser as interpretações que ele esperava para a sua “deixa”. Mas era. Ele levantou juntamente com ela e caminhou em sua direção. Seu olhar era de um homem que saberia como encarar os próximos dias. A casa estava quase pronta e o clima no escritório poderia ser contornado. Ele era um homem de posses e poderia cuidar da situação. Haveria conflito e até reprovação. Ele estava pronto para tudo. Confiante - aquilo estava bem ensaiado -, ele disparou sua frase triunfal diante dos colegas: “Agora podemos ficar juntos”. Não foi o que aconteceu.
Duas histórias acabaram ali e uma continuou. Ela vive com o seu namorado.
O homem das esperanças exibe agora um olhar opaco e conta passos pelos corredores. Pensou mil vezes em convidar o sujeito das malas para chorar as pitangas e falar mal daquela puta linda.