O século XX gerou vários fantasmas. Provavelmente nos lembraremos de criaturas como Hitler, Mao, Stalin e outros seres que nos fizeram duvidar da humanidade como projeto viável.
Os fantasmas mais assustadores, no entanto, são mais sutis. Eu voto em Eichmann, o oficial, o funcionário, o técnico, o burocrata a serviço do nazismo. O homem que organizava, calculava, exercia seu ofício com competência e ‘imparcialidade’. Credita-se a Eichmann a morte de uma quantidade absurda de pessoas em campos de concentração e outras formas de extermínio. Esse homem, quando foi julgado no início dos anos 1960, não mostrava ódio ou qualquer tipo de rancor pelas pessoas que zelosamente encaminhou para a morte.
Ele parecia mostrar clareza de seu papel e apenas o realizava com a maior eficiência possível. Sem amores, sem sentimentos supérfluos. Havia tarefas, objetivos, missões a serem realizadas e cabia aos administradores e técnicos a sua realização. Isso o torna menos culpado pelo seu papel na história do extermínio racionalizado dos nazistas?
A resposta dessa pergunta será sempre o dilema dos nossos dias. Será o nó ético das nossas ações no mundo que respira sistemas, processos, objetivos e eficiência. Quando não conseguimos mais sentir que parte somos dentro das organizações (sejam elas quais forem) e apenas realizamos, fazemos a roda girar, há o risco de já termos hospedado um pedaço de Eichmann em nossas vidas.
É pouco provável, mas não completamente improvável, que algum de nós comande e organize formas eficazes de extermínio de judeus, ciganos e anormais diversos para ganhar os dias, porém as formas contemporâneas de trabalho estão - principalmente nas empresas mais integradas ao mercado, mais lucrativas ou com formas moderníssimas de gestão - baseadas em emaranhados burocráticos que complicam, tornam difusa a nossa noção de “quem está ganhando efetivamente em cima do meu trabalho?”. Na verdade, tudo se encaminha para que esse tipo de questionamento não seja nem mesmo articulado. Fazemos bem feito o que deve ser feito. Ponto. Esperamos não sermos demitidos, ter algum avanço no plano de carreira ou termos alcançado metas de PPR.
O fantasma de Eichmann é o espectro do século XX sobre o XXI. Tanto pior ele se torna quando deixamos de temê-lo. O abismo é quando nos tornamos o próprio fantasma que deveria viver apenas nos piores pesadelos.
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