quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O caminho de cada um

Na 28 de Setembro, entre as quadras da Deodoro e da Floriano, há um corredor que desemboca num estacionamento. Nesse espaço é possível enxergar a Catedral num ângulo pouco comum. Vejo um sujeito admirando essa vista. Caminhava pela calçada e repentinamente relaxou o tranco. Torno-me ele.

Olhava cheio de esperanças aquele corredor, um olhar abobado e sonhador. Mãos para trás. Fitou por um bom tempo as paredes, o calçamento irregular e a Catedral acima de tudo.

Naquele instante ele construiu sua própria rua. Ali só haveria uma casa. Sem certeza, pensava se seria um sobrado rente à rua ou um chalé com um belo jardim. Uma coisa era certa, naquela rua só haveria uma casa, a sua. Nada de asfalto. Imaginava o granito reluzente. As pedras que nas noites de lua generosa oferece um caminho prateado. Que nos dias de garoa oferecem perigos e reflexos incertos. Imaginava-as como poros, como uma pele que se estende pelo chão e ao sol encanta e seduz.

Naquela rua não seria permitido que camionetas estacionassem no oblíquo. Já era demais vê-las atravessadas nas ruas largas da cidade. As placas de indicação não seriam raras. Os incautos não se sentiriam perdidos. Indicações para a capital, para outras cidades do interior, para os bairros. Ninguém poderia acusá-lo de ter negligenciado informação.

Não permitiria que a hepatite urbana invadisse sua rua. Na verdade, ele sentia que a única rua daquela cidade na qual ele poderia arbitrar era essa, uma rua imaginária e intocável.

Haveria uma mesa em frente, na calçada. Para receber amigos, convidados, Anas e Lyas, se fosse o caso. Deixava-se levar por uma ponta de maldade em seus pensamentos: aquela mesa seria também um indicador para os que “não merecem dividir a mesa comigo”. Sem querer, um sorriso irônico se desenhava nos lábios.

Pensara até num dispositivo legal que não permitisse carros e motos de som na rua. Imaginava-se persuadindo vereadores a encaminhar leis que asseverassem: “é terminantemente proibido o trânsito que qualquer veículo com equipamento de divulgação sonora na Rua...”. A lei já parecia tão boa e tão adequada que tentava imaginar o que impedia que tal benefício fosse oferecido a todos os cidadãos.

Já sabia todos os detalhes da rua. Faltava, ainda, um nome. Não tivera coragem de imaginar seu próprio nome dado a ela. Lembrou do avô, de uma tia também. Seria indigno, pensou, ele nomear o logradouro por capricho, por nepotismo nominal. Não há antepassado que mereça um mérito por meios tortos. Moralmente, o pensamento procedia. “Deixemos a Deus esse tipo de escritura”, imaginou ainda. “Quem sabe Rua do Ipê?!” Não havia o tal ipê, mas nada impedia de plantá-lo. Um caso raro se apresentaria. O motivador do nome surgiria depois. E no ipê ninguém tocaria. Um ipê não é um bonsai para ficarem trançando arames e aparando pontas.

Há tempos saíra da estática inicial. Caminhava e pensava na sua rua. Um despertador grita ao seu ouvido. Acorda o sujeito. Uma buzina violenta faz lembrá-lo de que nas ruas onde o sonho não perambula, nem as faixas para os caminhantes lhes pertencem.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Rubinho e Jonas (Moisés Mendes)

Resolvi reproduzir o texto do Moisés Mendes da Zero Hora (publicado ontem na coluna do Sant'Ana) por pensar de forma muito semelhante.
...

É difícil se acostumar com o século 21. Rubinho pode ser campeão da Fórmula-1, e o Jonas pode ser o goleador do Brasileirão. A Argentina pode ficar de fora da Copa do Mundo. Madonna pode se casar com Jesus. Mas o que melhor expressa essas senhas erráticas do século 21 são mesmo essas façanhas do Rubinho e do Jonas. Rubinho era, até a penúltima chuvarada, um trapalhão que jogava parafusos na testa dos outros. Rubinho era o Didi. Jonas era o Dedé.

Isso pode ser bom, porque revela que todos podem chegar lá. E pode ser ruim, porque favorece a exaltação de que o que interessa mesmo é vencer. Mesmo que seja aos trambolhões. Foi assim que a Alemanha venceu a Holanda em 1974, e a Itália despachou o Brasil da Copa de 1982. Times vencedores e atletas vencedores podem não significar nada, se a vitória não tiver alguma magia. Aqueles times da Itália e da Alemanha não significam nada para o futebol.

A magia do Rubinho e do Jonas pode ser a do patinho feio, ou dos fracos também vencem, ou o sol nasce para todos, inclusive em dias chuvosos. O que não se pode é vencer por vencer. Esse time de vôlei do Bernardinho. Diga rápido quantas vezes esse time conquistou a Liga Mundial? Escale esse time. Sou gremista e sei de cor o time juvenil do Internacional dos anos 70 comandado pelo Falcão. Mas não sei escalar esse time do Bernardinho. Porque falta magia, falta a alma da arte. O time de vôlei é uma máquina de vencer. Time mágico foi aquele que perdeu o ouro e nos trouxe a prata da Olimpíada de 84 em Los Angeles, com Bernard, Renan, Montanaro...

Não é conversa de velho e vou provar que não. Pete Sampras, por exemplo, era há até bem pouco o grande vencedor do tênis. Sampras foi uma máquina de vencer, como o time de Bernardinho. Eu fico com Roger Federer. Quem viu o que Federer fez no último domingo, no confronto com o sérvio Novak Djokovic, no Aberto dos Estados Unidos, sabe do que estou falando. Federer venceu o jogo depois de devolver uma bola perdida pelo meio das pernas. Federer é mágico. Guga era mágico. Sampras era apenas um ganhador de títulos. É pouco.

Tostão, o craque de 70, capaz de tudo para que uma jogada fosse simplificada pelo imprevisível, diz que o futebol se transformou num esporte de esquemas. É bom para vencer, porque tudo na vida agora é vencer. É ruim para o espetáculo e para quem vai ao estádio para ser surpreendido por um lampejo, um só. Anos ruins, sem mágicos, produzem o que aconteceu em 1985, quando Bangu e Coritiba decidiram o campeonato brasileiro. Anos ruins produzem essas deformações. E 1985 foi tão ruim, que seria o ano de Tancredo e foi de Sarney. Agora, 2009 pode ser o ano do Barueri.

Casagrande, o comentarista, disse um dia na TV que gols bonitos feitos em impedimento deveriam ser validados a critério do juiz. Em nome da magia. Eu pego carona na boa ideia. Muitos gols do Grêmio deste ano são vergonhosos. Deveriam ser anulados.

Rubinho ainda tem quatro provas para produzir a magia. Pode vencer na última corrida com dois pneus furados e sem câmbio, como Senna fazia. E o Jonas pode assegurar o título ao Grêmio na prorrogação do último jogo. Com um gol de bicicleta em que a bola bate no travessão e nas costas do goleiro e só entra depois de ricochetear num quero-quero. É dureza depender da magia do Rubinho e do Jonas.

sábado, 12 de setembro de 2009

A vaca

A sabedoria popular credita um valor irrefletido àquilo que se considera um ato virtuoso. Ninguém questionou a bondade de seu Nassico quando, ali pelo fim dos setenta, ele presenteou seu Eucaris com uma majestosa holandesa digna de medalha e com tetas estufadas.

Os tempos não andavam fáceis para a família de Eucaris, e Nassico, homem de posses e de vacas leiteiras, honrou a antiga amizade com a malhada. Ela havia de ser útil à família. Desde que bem alimentada o leite seria farto. Naqueles tempos a família já deixara o campo e até o centro da cidade para trás. Já viviam no Bairro Santos Dumont. Bairro novo e próximo ao aeroporto. Uma rua separava o bairro da rival Vila Capão do Angico. Lugar de má fama e que devia ser evitado pelos virtuosos do Santos Dumont. Andando mais um pouco havia lotes de terrenos baldios crivados de capim. Pasto para a vaca havia. Bastava alguém levá-la diariamente a esses lugares de comida abundante e gratuita.

A família, na época, não era mais tão numerosa. A mãe, o pai, uma filha e um filho - o piá da casa. Não demorou para a tarefa diária do leva e traz da vaca se tornar a responsabilidade do guri. Quisera o pai que ele também fosse quem ordenhasse a vaca das virtudes. O guri era um desastre na arte leiteira e não extraía mais do que uma caneca das mesmas tetas que ofereciam dois ou três tarros por dia. Levar e trazer o animal não parecia exigir tanto e continuou sendo a serventia do guri com pouco mais de dez anos.

Logo nos primeiros dias já se percebeu que deixar a vaca pela manhã e buscá-la ao final da tarde não era algo tão preciso. A vaca, de saída, embestou de querer voltar para o antigo lar e sumiu. No outro dia o Nassico avisou que o bicho andava por lá. Foi, foi, foi até que a vaca cansou de voltar pra casa e entendeu que sua vidinha de vaca não seria mais por lá e sim pelos campinhos dos arrebaldes do Alegrete.

O piá também se rendeu a rotina do levar e trazer. Imaginava, sem orgulho ou motivação, que apelidos já não corriam pelas línguas desocupadas da vizinhança. O “guri da vaca”, o “piá da vaca”.

Sentia pena de si. Todos os dias, seguiam ele, a soga e a vaca gigantesca rumo aos terrenos baldios. Nada superava, no entanto, o assombro diário de buscar a malhada ao cair da tarde. A volta da escola nunca era o final do dia. O final do dia era o resgate daquela deusa indiana na campanha. Ela ainda estaria no mesmo lugar? Caso não, pra onde a infeliz teria se bandeado? Estaria vagando pelas ruas do infame Capão do Angico? Teria sentido saudade da velha casa e atravessado a cidade?

A vaca e seus ardis era uma surpresa a cada dia. Há uma época do ano na qual as flores amarelas da maria-mole tomam os campos. Tudo fica amarelo e coberto por uma vegetação com quase um metro de altura. Houve vários dias que a vaca cansada de pastar e de perambular em meio às flores decidia deitar-se em meio ao campo florido. Ela desaparecia e para achá-la só havia um jeito: ziguezaguear e campear até tropeçar no animal. Havia dias que isso era rápido. Noutros virava uma agonia a cada esmaecida do sol. O dia tornava-se noite e nada da vaca. Havia os dias que a vaca emburrava e decidia não levantar sua quase uma tonelada de virtude. Ficava, o impávido colosso, a ruminar sua imobilidade bovina. Não adiantava puxar a cordinha, dar pontapés, chacoalhar os chifres. Era necessário esperar alguma boa vontade do animal.

Assim foi durante muito tempo. Uma desventura a cada dia. Copos e copos de leite eram a recompensa para o constrangimento diário de carregar a vaca pra lá e pra cá. Era a sua parcela na luta diária da família. Nas lembranças que guardam os dias sem fim da vaca incerta, o heroísmo e a dignidade não estão presentes. Há aquela idéia fixa e precisa: eu era o “guri da vaca”.


(história baseada em relatos da vida dos outros)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Identidade cambiante: City of Melbourne



Cidades, estados ou países com estratégias bem pensadas para a construção da sua imagem podem virar marcas. Mas isso nem é mais novidade. Melbourne está em processo de consolidação nesse sentido. A cidade até possuía uma marca, mas a nova (representada acima e que vem sendo usada desde julho) tem tudo a ver com o que a cidade quer dizer para o mundo.
Enquanto isso, por essas bandas, os ânimos políticos de cada gestão definem que a marca da cidade (confundida com marca da prefeitura) deve mudar a cada novo prefeitinho ou aglomerado de interesses partidários.
Quando não é isso é a Câmara de Vereadores que aprova uma lei que institui o brasão como a marca da prefeitura e, por extensão, do município.
Assim fica bem complicado construir uma marca-cidade séria e coerente. Esperemos, quem sabe, mais uns 30 anos até chegarmos nesse ponto de maturidade institucional.

sábado, 5 de setembro de 2009

Texto sobre Berlim na Gazeta

Saiu neste sábado (05/09) na Gazeta do Sul o meu texto sobre Berlim e os 20 anos da queda do Muro.
Os links seguem abaixo.
Boa leitura.

Capa: O que resta do Muro?
Pág. 4: Além do Muro
Pág. 5: Cidade aberta

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Hermann Hesse

Há inúmeras maneiras de dizer que somos responsáveis pelo nosso tempo. De todas, no entanto, prefiro essa página de "O lobo da estepe" (Hermann Hesse):

Ergueu a mão como se estivesse regendo a orquestra, e uma lua, ou uma pálida constelação, surgiu algures. Olhei sobre a caixa do palco o espaço insondável, no qual se levantavam névoas e nuvens, no qual emergiam montanhas envoltas em crepúsculos e praias, e aos nossos pés se estendia uma ampla planície desértica. Na planície vimos um ancião de aspecto respeitável, de longa barba, e rosto aflito, que conduzia um exército poderoso de uns dez mil homens todos vestidos de preto. Parecia estar confuso e desesperado, e Mozart disse:

— Veja, é Brahms. Aspira à redenção, mas custará muito a alcançá-la.

Soube que aqueles milhares de homens vestidos de preto eram seus cantores e executantes daquelas vozes e notas que, segundo o juízo divino, haviam sido desnecessárias e supérfluas em suas partituras.

— Orquestração demasiado pesada, vasto material desperdiçado — observou Mozart.

Em seguida vimos à frente de um grande exército, igualmente numeroso, Richard Wagner empurrado pela multidão, fatigado, arrastando-se com passos vacilantes.

— Em minha juventude — observei com tristeza — esses dois músicos eram tidos como os mais extremos contrastes que se podia conceber.

Mozart sorriu.

— Sim, é sempre assim. Tais contrastes, vistos a pequena distância, sempre tendem a apresentar sua crescente similitude. A instrumentação excessiva não foi, na verdade, uma falha pessoal de Wagner ou de Brahms; era um defeito de sua época.

— Como? E tiveram de pagar tão duramente por isso? — exclamei em tom de protesto.

— Naturalmente. A lei segue seu curso. Depois de pagar a culpa de seu tempo, ver-se-á se a culpa pessoal merece alguma redenção.

— Mas nenhum dos dois teve culpa?

— Certamente que não. Não tiveram culpa, como tampouco Adão teve culpa de haver comido a maçã e nem por isso deixou de pagar pelo pecado.

— Mas isso é terrível.

— Sem dúvida, a vida é sempre terrível. Nada podemos fazer em contrário e, não obstante, somos responsáveis. Mal se nasce já se é culpado. O senhor deve ter recebido instrução religiosa muito particular para desconhecer tais dogmas.

Aquilo fora para mim desilusório. Vi-me a mim mesmo arrastando-me pelo deserto do além, como um peregrino morto de cansaço, carregado com os inúmeros livros inúteis que havia escrito, com todos os artigos e opúsculos que havia publicado, seguido de um exército de leitores que se viram obrigados a tragar tudo aquilo. Meu Deus! E além disso, ali estavam também Adão e a maçã e toda a restante culpa hereditária. Tinha de purgar tudo aquilo e só então poder-se-ia levantar a questão se, após tudo aquilo, havia algo pessoal, algo próprio que considerar, ou se todos os meus atos e suas conseqüências não seriam mais que espumas boiando no mar, ondulação sem sentido na torrente dos acontecimentos.


terça-feira, 1 de setembro de 2009

Francis, Carlos, Felipe e Olavo

Francis estuda cinema. Começou a estudar depois de descobrir que poderia viver do audiovisual. Antes de se transformar em um aluno da sétima arte ele gostava de cinema como a maioria das pessoas. Sabia, no máximo, quando um filme era do Spielberg ou uma produção da Dreamworks. Hoje, assiste a tudo de Allen, Kiarostami, Kar-Wai e Tarantino. Virou fã de Kurosawa e Bergman. Francis é dedicado e usa bem as câmeras digitais, entende de lentes e filtros, sabe editar e já escreveu vários roteiros para curtas. É fácil encontrá-lo discutindo a estética glauberiana ou os ângulos de Welles. Tornou-se um cinéfilo, um homem esclarecido.

Para Carlos a vida é um espaço de tempo entre dois grandes nadas dedicado ao violino. Desde criança foi incentivado pela família. Os tios também são músicos e todos sonhavam em ver um membro da família tocando numa orquestra. Carlos conseguiu. Não é a maior ou a melhor orquestra que já se viu, mas é uma orquestra e Carlos é um dos violonistas mais respeitados e dedicados. Para ser mais exato, seis horas de dedicação diária. Bach, Mozart, Chopin, Debussy e assim por diante. Carlos conhece bem a obra deles. Para Carlos, não basta executar, ele precisa sentir o espírito dos autores. Imersão é o caminho para a perfeição.

Felipe ainda usa uma câmera com negativo para fotografar a alma das pessoas simples. Mas ele sabe trabalhar com câmeras digitais. Não é um purista. Os retratos em P&B de Felipe são arrebatadores. Felipe já ganhou concursos do SESC e de revistas aclamadas. Fez exposições em várias cidades. Ele gosta de fazer fotos saturadas com a granulação visível. Acha que Sebastião Salgado se seduziu pelo sucesso e prefere o trabalho de poloneses e albaneses impronunciáveis. Felipe tem um site com suas obras e é um sucesso entre estudantes de fotografia em todo o país.

Olavo estudou filologia. É especialista em latim, grego e alemão. Além disso, também se expressa com fluência em russo, inglês, espanhol e francês. Homem erudito e raro. Tem sólidos conhecimentos em teologia e já traduziu mais de vinte livros para o português. Já viveu na França e na Alemanha. Sempre teve muito prestígio e respeito nas rodas acadêmicas. Nunca lecionou em universidades, mas era recorrente sua participação em seminários internacionais.

Francis, Carlos, Felipe e Olavo ouvem as badaladas. Os pesados sinos da igreja anunciam a chegada da noiva. O carro reluzente estaciona lentamente. Francis acerta o foco. Carlos empunha o violino. Felipe está com a melhor lente e com as luzes preparadas. Olavo não sabe, mas ministrará o milésimo casamento da sua vida. A data especial será comemorada com os artistas e intelectuais da cidade. Será um grande evento.