Na 28 de Setembro, entre as quadras da Deodoro e da Floriano, há um corredor que desemboca num estacionamento. Nesse espaço é possível enxergar a Catedral num ângulo pouco comum. Vejo um sujeito admirando essa vista. Caminhava pela calçada e repentinamente relaxou o tranco. Torno-me ele.
Olhava cheio de esperanças aquele corredor, um olhar abobado e sonhador. Mãos para trás. Fitou por um bom tempo as paredes, o calçamento irregular e a Catedral acima de tudo.
Naquele instante ele construiu sua própria rua. Ali só haveria uma casa. Sem certeza, pensava se seria um sobrado rente à rua ou um chalé com um belo jardim. Uma coisa era certa, naquela rua só haveria uma casa, a sua. Nada de asfalto. Imaginava o granito reluzente. As pedras que nas noites de lua generosa oferece um caminho prateado. Que nos dias de garoa oferecem perigos e reflexos incertos. Imaginava-as como poros, como uma pele que se estende pelo chão e ao sol encanta e seduz.
Naquela rua não seria permitido que camionetas estacionassem no oblíquo. Já era demais vê-las atravessadas nas ruas largas da cidade. As placas de indicação não seriam raras. Os incautos não se sentiriam perdidos. Indicações para a capital, para outras cidades do interior, para os bairros. Ninguém poderia acusá-lo de ter negligenciado informação.
Não permitiria que a hepatite urbana invadisse sua rua. Na verdade, ele sentia que a única rua daquela cidade na qual ele poderia arbitrar era essa, uma rua imaginária e intocável.
Haveria uma mesa em frente, na calçada. Para receber amigos, convidados, Anas e Lyas, se fosse o caso. Deixava-se levar por uma ponta de maldade em seus pensamentos: aquela mesa seria também um indicador para os que “não merecem dividir a mesa comigo”. Sem querer, um sorriso irônico se desenhava nos lábios.
Pensara até num dispositivo legal que não permitisse carros e motos de som na rua. Imaginava-se persuadindo vereadores a encaminhar leis que asseverassem: “é terminantemente proibido o trânsito que qualquer veículo com equipamento de divulgação sonora na Rua...”. A lei já parecia tão boa e tão adequada que tentava imaginar o que impedia que tal benefício fosse oferecido a todos os cidadãos.
Já sabia todos os detalhes da rua. Faltava, ainda, um nome. Não tivera coragem de imaginar seu próprio nome dado a ela. Lembrou do avô, de uma tia também. Seria indigno, pensou, ele nomear o logradouro por capricho, por nepotismo nominal. Não há antepassado que mereça um mérito por meios tortos. Moralmente, o pensamento procedia. “Deixemos a Deus esse tipo de escritura”, imaginou ainda. “Quem sabe Rua do Ipê?!” Não havia o tal ipê, mas nada impedia de plantá-lo. Um caso raro se apresentaria. O motivador do nome surgiria depois. E no ipê ninguém tocaria. Um ipê não é um bonsai para ficarem trançando arames e aparando pontas.
Há tempos saíra da estática inicial. Caminhava e pensava na sua rua. Um despertador grita ao seu ouvido. Acorda o sujeito. Uma buzina violenta faz lembrá-lo de que nas ruas onde o sonho não perambula, nem as faixas para os caminhantes lhes pertencem.