Segue abaixo a introdução da minha qualificação para o doutorado. Quem se interessar pelo assunto ou tiver dicas e reflexões, cá estou a ouvir.
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Foi durante o século 20 que a literatura distópica se consolidou, tomou corpo, ganhou notoriedade e se firmou como uma das marcas desse tempo. Houve condições amplas para isso, para a emersão de uma forma de pensar, imaginar e escrever sobre o futuro como um tempo no qual as coisas se tornariam piores. Até o século 19, esse sentimento sobre os dias que viriam não eram imagens de um pesadelo. Um pensador ou um escritor, quando pensava sobre o futuro, facilmente imaginava que o ser humano seria capaz de conduzir seus passos para mundos melhores. Projetava a vida a partir de desígnios normalmente otimistas e depositava fé na ciência, na tecnologia e na racionalidade como os meios capazes de arquitetarem a vida ideal no futuro. Imaginava-se um sonho adiante.
Quando o engenheiro naval russo Eugene Zamiatin escreveu o romace Nós em 1920 (mas publicado em 1924) não deve ter lhe ocorrido que estivesse redigindo o texto que é considerado, atualmente, uma espécie de obra fundadora e de referência para a literatura distópica. Como em tantos casos, a categorização, a definição do gênero, veio posteriormente. Zamiatin estava registrando suas impressões, seu estado de ânimo, a mentalidade de uma época e as condições históricas num romance que projetava um mundo para mil anos adiante. O seu esboço de futuro nada tinha a ver com textos como a República de Platão, a Utopia de Thomas More ou Atlantis de Francis Bacon. Todos eles apostavam muito na capacidade humana – no futuro ou num lugar desconhecido - de viver seu livre arbítrio de acordo com as intenções mais nobres e dignas para o bem da própria humanidade.
O futuro imaginado de Zamiatin estava calcado na potencialização daquilo que ele via se desenhando na União Soviética sob o regime comunista. Textos desse tipo se tornarão constantes durante o século 20 – e se estendem ao capitalismo - e o futuro não será mais um tempo que tenha saído dos sonhos. O termo pesadelo se adequa melhor na imaginação dos escritores distópicos e isso não é gratuito, não brota espontaneamente como um manifestação solitária. O filósofo inglês Isaiah Berlin, por exemplo, se refere ao século 20 como o mais terrível da história. Se foi nesse século que houve uma ampliação sem precedentes na expectativa de vida da população, na ampliação da alfabetização, na erradicação de males milenares e tantas outras conquistas indiscutíveis, foi também o século que terá para sempre as cicatrizes de conflitos, agressões e massacres em dimensões inimagináveis até então. Há, portanto, um contexto para esse tipo de manifestação e isso está relacionado com o imaginário, o conjunto de imagens, de projeções, de sensações que habita um mundo pouco penetrável e é pouco provável de ser mensurado objetivamente.
O imaginário de uma época é impossível de ser alcançado na sua totalidade. Há pistas, indícios e registros das mais diversas formas, que acabam servindo como indicadores das crenças, esperanças, medos ou ansiedades de determinados indivíduos ou grupos. Uma obra literária pode revelar a visão de alguém sobre os temores de uma época, de uma década, o sentimento sobre as mentalidades de um tempo e lugar. E, assim, pode ser um caminho para se encontrar fragmentos de um imaginário que tende, em conjunto, a conter revelações significativas desse contexto. Quando essas visões ou interpretações individuais se repetem e fazem surgir um conjunto de registros que seguem olhares similares a partir de condições sociais, econômicas e culturais com um certo grau de contato e troca, há um fenômeno relevante e merecedor de atenção.
Um autor, quando inicia seu inventário de temores para desenhar um mundo imaginário – seja em outro tempo ou lugar – que pareça aterrorizante para os seus contemporâneos, procura, normalmente, criar as condições para que se preste atenção no quanto o seu mundo, numa perspectiva potencial, pode estar se encaminhando para esse que a ficção projetou . Esses medos, essas percepções, que nas tintas do escritor acabam se tornando mais intensas, justamente para que se possa ver seus tons normalmente discretos, expõem uma trama rica de imagens que esse narrador colhe da sua existência e que, inevitavelmente, são tecidas na intersecção com uma sociedade que possui uma teia de relações, de procedimentos, de hábitos, de promessas, de imagens, de potências e impotências.
Esta pesquisa analisa sete romances, categorizados como literatura distópica, publicados entre os anos de 1924 e 1953 na Europa e nos Estados Unidos: Nós (1924), Admirável mundo novo (1932), A guerra das salamandras (1936), Kalocaína (1940), 1984 (1949), Revolução no futuro (1952) e Farenheidt 451 (1953). A literatura distópica, pela forma como será argumentada e identificada neste trabalho, se mostra como um gênero percuciente do século 20. O período específico, por se considerar como o tempo que reúne as condições para a emersão dos textos que se tornam as referências consolidadas em literatura distópica, é o entreguerras. Trata-se de uma época com traços próprios para o surgimento de uma força imaginativa menos otimista e descrente nas propostas e sonhos utópicos de séculos anteriores ou, notadamente, em relação ao racionalismo e utopismo tecnológico do século 19.
Metodologicamente o trabalho apresenta sete ensaios abordando cada um dos romances. Esses ensaios estão focados na maneira como a tecnologia e as formas de controle ao nível coletivo e individual estão presentes como temáticas recorrentes na construção das sociedades e indivíduos imaginados nessas distopias . Para tanto, são usados os textos originais, interpretações já produzidas a partir desses romances e reflexões sobre a distopia como perspectiva artística e crítica no século passado.
Antes, no entanto, de entrar na leitura propriamente dita desses textos, são abordados, com a ênfase necessária para esta pesquisa, os seguintes temas: os conceitos relacionados à literatura distópica e sua relação com a utopia; a questão da tecnologia e do controle como conceitos fortes na constituição do pensamento do século 20; e o contexto do entreguerras como momento que dá condições para a consolidação de uma literatura de feição distópica.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Grooming
Entre certas espécies de macacos há um hábito que tem merecido a atenção de estudiosos há mais de século. Um macaco está parado, muitas vezes sentado ao sol, e então outro se aproxima lentamente e começa a mexer no seu pelo. Ele fica ali passando os seus dedinhos de macaco, às vezes parece alisar, noutras parece enlouquecido catando piolhos. Ele fica, sobretudo, despendendo tempo em torno do outro macaco. Outros tantos macacos verão aquilo e mais outros tentarão se aproximar, em outro momento, dos tais macacos. Pode acontecer de um macaco ou macaca ter uma posição privilegiada entre a macacada e daí mais primatas embestarão de querer perder seu precioso tempo nessa atividade que nada parece ter de útil (o catar de piolhos é quase sempre uma encenação).
O termo para designar esse nobre hábito simiesco é grooming. Certamente causa prazer ao macaquinho afagado o cafuné providencial, mas a função política e pública do grooming é que faço questão de destacar aqui. Os outros macacos enxergam a situação e percebem as relações existentes, o servilismo público, os contatos autorizados, a troca de favores débeis. Os macacos mais fracos se especializam em oferecer seus cafunés públicos a quem quer que lhes pareça oportuno na construção de relações dentro do grupo. Eles vão se permitindo esse jogo de relacionamentos, de afagos, de trânsitos simbólicos.
No fim das contas, a maioria troca um afaguinho aqui, outro ali. Macacos não são animais tão evoluídos quanto humanos e o grooming tem sido uma das suas marcas de socialização. Somos, portanto, bem diferentes. Somos?
Proponho, a partir da breve síntese acima, uma definição antropológica para certos hábitos praticados com extensa e constante freqüência nas redes e mídias sociais como webgrooming. Preciso explicar mais?
O termo para designar esse nobre hábito simiesco é grooming. Certamente causa prazer ao macaquinho afagado o cafuné providencial, mas a função política e pública do grooming é que faço questão de destacar aqui. Os outros macacos enxergam a situação e percebem as relações existentes, o servilismo público, os contatos autorizados, a troca de favores débeis. Os macacos mais fracos se especializam em oferecer seus cafunés públicos a quem quer que lhes pareça oportuno na construção de relações dentro do grupo. Eles vão se permitindo esse jogo de relacionamentos, de afagos, de trânsitos simbólicos.
No fim das contas, a maioria troca um afaguinho aqui, outro ali. Macacos não são animais tão evoluídos quanto humanos e o grooming tem sido uma das suas marcas de socialização. Somos, portanto, bem diferentes. Somos?
Proponho, a partir da breve síntese acima, uma definição antropológica para certos hábitos praticados com extensa e constante freqüência nas redes e mídias sociais como webgrooming. Preciso explicar mais?
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