terça-feira, 16 de novembro de 2010

Perec e o segredo

“Num banco não muito longe de você, um velho mumificado, imóvel, com os pés juntos, o queixo apoiado na extremidade da bengala que ele agarra com as duas mãoes, olha durante horas para o vazio diante de si. Você o admira. Procura-lhe o segredo, a fraqueza. Mas ele parece intocável. Deve ser surdo como uma porta, meio cego e paralítico. Ele nem sequer baba, não move os lábios, mal pisca. O sol gira em torno dele; talvez seu único cuidado consista em seguir a própria sombra; deve ter marcos há muito definidos; sua loucura, se for louco, talvez seja tomar-se por um relógio de sol. Assemelha-se a uma estátua, mas tem sobre ela a vantagem de poder levantar-se e andar, se quiser.” Georges Perec[1967]. Um homem que dorme. p. 48
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O segredo oferece a opção. Dá aos não iniciados, aos não pertencentes, a dúvida. Dominar um segredo alheio e dominar uma fraqueza é ver além das paredes. Quem tem seus domínios mantidos, suas intimidades sob o seu próprio controle, não está à mercê de se tornar, portanto, um ameaçado pelo controle civilizador. É, antes, o risco, a dúvida, a possibilidade do descontrole, e isso não está em concordância com a ideia de previsibilidade da sociedade. O sujeito senhor de si tem a opção de levantar, de permanecer. De ser uma estátua, um humano, o que bem entender, pelo tempo que desejar. Isso é ameaçador, isso é mais do que a liberdade alardeada pela transparência total oferece.

A ideia de que uma sociedade permeada pela transparência, pelo compartilhamento dos saberes, pelo equilíbrio dos poderes (individuais, institucionais, estatais etc.), pelo ser completamente visível gerará um mundo menos corrupto, mais pacífico, mais igualitário, mais humano (no sentido otimista do termo) é a materialização da noção de homem como dispositivo controlável e autocontrolável. A utopia baseada numa premissa de que “se estou sendo visto por todos” manterei a dignidade, a ordem e o bem agir é constituir o homem não como um fluxo descontínuo e pulsional, um ser animal em sua essência, mas significa constituí-lo como criatura possivelmente moldável, possivelmente componível. “Confiança é bom, mas controle é melhor”, esse ditado alemão antigo diz em poucas palavras do que somos feito. De descompassos, de intrigas, de humanidades indesejáveis a uma mundo que caminha desde os primeiros grupos para a sua autopreservação. A manutenção da vida deve ser mantida, não interessa a que preço. Toda a forma de descontrole é vista como insatisfatória e para evitar o imprevisível a instrumentalização dos procedimentos sociais contribui para a equação da vida em rebanhos.

Um comentário:

Anna Laura disse...

Adoro teu blog Rudi.
Vou divulgá-lo no Twitter. HAHA =)

Abraços.