sexta-feira, 23 de abril de 2010

Ausência


Cortou caminho pela praça. Começou a travessia usando um corte da quadra em 45 graus. A hipotenusa era mais curta. Matemática prosaica. Deparou-se com o chafariz e seus cavalos-marinhos que cospem água. Fazer a volta, e era inevitável, tornaria o tal caminho mais curto num percurso semelhante à soma dos catetos.
Caminhando cada vez mais lentamente e batendo com os dedos na murada de metal no entorno do chafariz ele acabou parando. Isto ele nem notou.
Desde um tempo já esquecido isso acontecia. Pensava mais um pouco e “acontecer” já não parecia ser o verbo adequado. Desde esse tempo inexistente, porque era incapaz de ser lembrado, ele era. Isso. Ele era assim. Não se tratava de algo que acontecia a espaços de tempos regulares ou não.
Pensou se tratar, depois de solucionado o verbo, de um traço inato. Caiu mal o adjetivo. Por conta disso declarou que inato não era. Seria, então, adquirido. O tempo e as coisas mundanas o tornaram. Tornar-se. Isso sim caía bem. O capricho do pensamento fez ‘ser’ e ‘tornar-se’ entrarem em conflito. Era questão de ordem, pensou. Ele se tornou quem era e desde que se transformou passou a ser quem de fato era. Pois estava bem feita a equação.
A paz, mesmo assim, não encontrou recanto.
Ele era algo e só pode concluir isso. Mas esse era, esse ser não encontrava um eco, uma só palavra que pudesse fazê-lo, pelo menos, discordar. A pergunta era seguida de um silêncio absoluto. Esse lugar quieto e inerte ganhou o nome de ausência. Nessa ausência ele se acomodava com constância.
Naquele canto habitado pelas perguntas que perdem a matéria, ele achou quem era e como havia se tornado nisso. Uma maldição de tempo infinito lançada por uma boca muda tornara-o aquele que nunca está onde está, aquele que sempre foi ou será, aquele que é ausente.
Aquele ponteiro, durante a ausência, continuava sendo uma reta presa a um ponto que servia para fazê-la girar em seu eixo. Contou 180 graus de giro durante o vácuo. Viu-se, ali no meio da praça, como um ponteiro imóvel. Seguiu adiante. Já era tarde.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Concurso fotográfico SESC-RS (edição 2010)

Recebi o prêmio de melhor foto na categoria 'comerciários' no concurso que o SESC-RS promove há sete anos.
Confira a matéria publicada na Gazeta do Sul de hoje.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Texto do Gustavo Ioschpe na Veja desta semana

O texto não está disponível na web ainda e por isso não tenho como fazer um link para a leitura do dito cujo.
De qualquer forma, sugiro a leitura a todos. O texto fala sobre a relação entre educação, capital humano e desenvolvimento econômico em diversos países durante o período de 1960 a 1992.
Ioschpe nos chama a atenção para o fato de estarmos nos encaminhando para a consolidação do Brasil como uma potência econômica, no entanto, esse desenvolvimento não tem sido acompanhado por melhoras significativas na educação. Seremos e somos, nas palavras dele e com as quais eu concordo e faço coro, uma 'potência de iletrados'.
Lemos mal, escrevemos mal, calculamos mal e assim por diante. Um dado se destaca entre os tantos que o autor recupera. Se levássemos em consideração aquilo que se considera como um padrão aceitável em termos mundiais o conceito de sujeito alfabetizado, teríamos apenas 25% da população brasileira contemplada nesse patamar. Essa tal de alfabetização ideal significa considerar alguém que entenda um texto como o que está expresso na própria revista.
Defender a educação como algo estratégico, entendê-la como crucial para alcançaramos um desenvolvimento duradouro, com uma visão política madura e de longo prazo são parâmetros que não podem ficar colados a ideologias políticas de esquerda ou de direita. Devem ser privilegiados com ações bem elaboradas na qualificação dos currículos, na atração de bons professores, na avaliação constante de educadores e alunos e assim por diante. Bons salários, obviamente, são necessários e tanto melhor será se eles servirem de incentivo e forem destinados àqueles que fazem o melhor trabalho.

Já que não tenho texto desta semana, segue este de um ano atrás. A forma de pensar é a mesma e os dados são outros.

domingo, 11 de abril de 2010

Parabéns, Mãe.


A cara meio bolachuda sorri com satisfação. Não é um sorriso abestalhado de comercial de pasta de dentes. É aquela manifestação involuntária da plenitude. Ele nem nota que sorri.
Ela não sorri. A expressão do olhar é apenas serena. Uma feição simples e completa.
De mãos dadas, seguem pela calçada nem tão larga da Coronel Brito. O filho com seus oito ou nove anos e a mãe recém passando dos 40. Ela pelo lado da rua e ele pelo lado das lojas. As mãos balançam intensamente pra frente e para trás e aquele cordão de outros tempos se mantém intacto. Uma breve troca de olhares, eles dizem qualquer coisa e ela concorda com um risinho de conhecidos de vida inteira. 
Depois de 20 ou 30 anos eles não lembrarão daquela tarde comum de sábado na qual foram até o centro.
O menino quem sabe nem tenha mais a cara bolachuda e não lembrará dessa ou dessas tardes. Talvez se recorde do sorvete do Quiosque ou da Mônica, do pastel da Jamaica ou do Sulzbacher, de uma frisante Polar no Gasparzinho. Não lembrará que a fila do sorvete era longa e lenta, que certos ambientes causavam constrangimento à mãe. Ele nunca saberá desses detalhes, ela nunca permitirá que ele saiba.
Ele ainda não sabe, mas aquele sentimento pleno e irrefletido pertencerá a outro tempo. A uma época que ele não alcançará mais. Sentirá, algum dia, saudades de algo que não saberá descrever. Apenas sentirá.
Ela saberá para sempre cada detalhe desses dias. Carregará cada história em cada entrelinha. Haverá dias que isso a salvará, noutros será um pesadelo. Sua saudade poderá sempre ser descrita passo a passo, ela nunca permitirá que ele saiba.

sábado, 10 de abril de 2010

Cartaz da Feira 2010

Aí está o cartaz aprovado para a Feira do Livro de SCS deste ano.
Na última reunião da comissão (06/04) ele foi aprovado e revisado.
A caricatura é trabalho (já postado aqui) do Hugo e o restante do trabalho visual e de redação foi feito por mim.
O slogan ("Ler é 10") foi definido pela comissão desde o ano passado.

Obs.: o rodapé ainda não está pronto. Falta o fechamento de atrações, patrocinadores e apoiadores. Possivelmente, dentro de um mês esses itens estarão resolvidos.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Encéfalos esponjosos


Tem dias que outra pessoa consegue manifestar de forma tão precisa o que sentimos que o melhor é nem tentar falar com as próprias palavras. O texto abaixo é um exemplo absoluto disso.
...
Terminou o "BBB10". Graças a Deus. Estamos livres. Estava ficando difícil evitar os comentários sobre o Besteirol Baixaria Brasil. Ou Bundas Brasileiras Balançando. Bastava ligar a televisão, a qualquer hora do dia ou da noite, para se ver ao menos uma chamada com uma bunda rebolando ou um cara afagando os países baixos. Pensei em fugir para o exterior. Havia sempre alguém no lotação falando no celular sobre as espetaculares discussões filosóficas travadas entre os protagonistas do jogo. Poucas vezes uma rede de televisão foi tão bem-sucedida na escolha de um grupo de QI reduzido. Não deve ter passado de 180 somando-se todos os integrantes.

A televisão costuma ser um poderoso instrumento de emburrecimento. O "Big Brother", para usar mais uma expressão de Jean Baudrillard, privilegia os encéfalos esponjosos, tanto dos participantes quanto dos telespectadores. É o programa mais idiota da história recente da televisão brasileira. Vi duas noites seguidas e senti meu cérebro tomando a consistência de uma gelatina ou de um mocotó. Ganhou um tal de Marcelo Dourado, gaúcho, filho de uma astróloga, certamente responsável pela sofisticada cultura do filho. Dourado destacou-se pelas suas declarações contra os homossexuais. O Brasil reacionário adorou. Venceu aquele que tem a cara do país: bronco, conservador e homofóbico.

Durante meses, milhões de pessoas submeteram-se a um triste espetáculo com disputas infantilizadoras e uma terminologia babaca escolhida para tocar o coração de antas, pacas e telespectadores: colar do anjo, brothers, sisters, big fone, confessionário, casa mais vigiada do Brasil, castigo do monstro, pular amarelinha vestido de criança, imunização, etc. Dourado levou R$ 1,5 milhão pela sua extraordinária capacidade de representar a estupidez nacional. Certamente desfilará em carro de bombeiro ao chegar em Porto Alegre. É o nosso novo Bento Gonçalves. O Rio Grande do Sul está orgulhoso do seu filho dileto. O "BBB" é uma atividade terapêutica de regressão. Até o apresentador, Pedro Bial, regrediu. Passou de bom repórter a animador de uma baixaria anual. Parece feliz. Deve ter encontrado o seu "eu" profundo.

Por que as pessoas veem o "Big Brother"?

Porque está à altura das suas competências intelectuais. O "BBB" é o equivalente televisivo da literatura de Paulo Coelho. Dizem que a Rede Globo assinou contrato para exibir mais 40 edições do "BBB". Se isso for verdade, quero migrar para a Sibéria com uma coleção de DVDs de Zorra Total e um pôster da dupla Victor e Leo. Topo tudo. Suporto qualquer coisa. O Ronan Prigent, adido cultural da França em Porto Alegre, foi transferido para Ekaterinemburgo. Pedirei que me acolha por lá. Trabalharei fazendo faxina ou recuperando encadernações das obras de Lenin. Suportarei temperaturas de 45 graus negativos. Só quero ficar livre dos fãs do "BBB". Não quero ter o azar de encontrar o Dourado na rua.

Texto de Juremir Machado da Silva, na sua coluna de hoje no Correio do Povo