sábado, 27 de junho de 2009

Fragmento de "Viagem ao fim da noite" (Louis-Ferdinand Céline)

Como não ando tendo nada de interessante para dizer, prefiro apresentar um fragmento de um romance que ando lendo.

Reproduzo aqui as páginas 102 e 103 de "Viagem ao fim da noite", de Louis-Ferdinand Céline. A Cia. das Letras relançou o livro (ele estava esgotado há anos) faz pouquíssimo tempo numa "edição de bolso" e custa menos R$ 25,00. Só para contextualizar, paguei R$ 60,00 por um exemplar de uma edição esgotada num sebo no começo do ano!


- Pois então, resumindo, Bardamu, saiba que ali defendo a seguinte tese: que antes da guerra o homem permanecia para o psiquiatra um desconhecido fechado e os recursos de sua mente, um enigma...
- É também minha modestíssima opinião, Mestre...
- Sabe, Bardamu, a guerra, pelos meios incomparáveis que nos confere para testar os sistemas nervosos, age à maneira de um formidável revelador do Espírito humano! Temos material para durante séculos nos debruçarmos, meditativos, sobre essas revelações patológicas recentes, séculos de estudos apaixonantes... Vamos reconhecer com toda sinceridade... Até então apenas suspeitávamos das riquezas emotivas e espirituais do homem! Mas agora, graças à guerra, está tudo claro!... Penetramos , depois de um arrombamento decerto doloroso, mas para a ciência decisivo e providencial, em sua intimidade! Desde as primeiras revelações, o dever do psicólogo e do moralista modernos passou a ser, para mim Bestombes, inquestionável! Uma reforma total de nossas concepções psicológicas se impunha!
Também era isso o que eu pensava, eu, Bardamu.
- Acho, Mestre, na verdade, que seria bom...
- Ah! Você também pensa, Bardamu, não sou que estou dizendo! No homem, veja bem, o bom e o mau se equilibram, egoísmo de um lado, altruísmo de outro... Entre os pacientes de elite, mais altruísmo do que egoísmo. Não é isso mesmo? Não é exatamente assim?
- É exato, Mestre, é isso mesmo...
- E no indivíduo de elite, qual pode ser, pergunto-lhe, Bardamu, a mais elevada entidade conhecida capaz de excitar seu altruísmo e obrigá-lo, esse altruísmo, a se manifestar incontestavelmente?
- O patriotismo, Mestre!
- Ah! Está vendo, é você que está dizendo! Você me compreende bem... Bardamu! O patriotismo e seu corolário, a glória, pura e simplesmente, sua prova!
- É verdade!
- Ah! Nossos soldadinhos, repare só, e desde as primeiras provas de fogo souberam se liberar espontaneamente de todos os sofismas e conceitos acessórios, e muito em especial dos sofismas da conservação. Foram por instinto e logo de cara se incorporar à nossa verdadeira razão de ser, nossa Pátria. Para ter acesso a essa verdade, a inteligência não só é supérflua, Bardamu, mas também atrapalha! É uma verdade do coração, a Pátria, como todas as verdaes essenciais, o povo não se engana! Ali precisamente onde o mau cientista se perde...
- Isso é bonito, Mestre! Bonito demais! É coisa da Antiguidade!
Ele me apertou as mãos quase afetuosamente, Bestombes.
Num tom agora paternal, ainda quis acrescentar para meu proveito: “É assim que pretendo tratar de meus pacientes, Bardamu, com a eletricidade para o corpo e para o espírito, com vigorosas doses de ética patriótica, com as verdadeiras injeções de moral reconstituinte!”.

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