O pai do Amós Oz inventa palavras para coisas novas com uma língua muito antiga: o hebraico. Moisés quando atravessou desertos e mares falava hebraico e naquela época as palavras dos mandamentos eram conhecidas de todos: matar, mentir, roubar e assim por diante. Ninguém fazia idéia desde quando os homens matavam, mentiam e roubavam e as palavras para nomear tudo isso deviam existir desde sempre. Pois é, mas computador, televisão, Internet e energia nuclear o Moisés nem seus contemporâneos sabiam o que era e não havia razão para criar palavras para essas coisas.
Uma das ocupações do pai do Amós Oz, hoje em dia, é tentar criar palavras para coisas modernas usando essa língua quase morta.
Meu pai também tem esse dom, inventar palavras, mas ninguém pede para ele criá-las. Ele as cria porque é um insatisfeito. Não suporta aquilo que não tem um nome. Na verdade, hoje, quase tudo já tem nome. Mas há coisas que conhecemos e não sabemos os nomes. Há coisas também que têm nomes inadequados. Especialmente para o meu pai.
Durante anos vi um certo pinheiro crescer lentamente no pátio da minha casa. Era o assobialino. Nunca me pareceu um nome estranho. Nunca desconfiei e não foram raras as vezes que disse, cheio de convicção, que aquilo era um pé de assobialino. Assobiliano vem do efeito sonoro que a conífera provoca diante dos ventos mais impertinentes. Ele faz aquele barulhinho: zzzzzzzzzzzzzziiiiii! Algo assim. O quarto do pai e da mãe fica bem atrás do lugar onde existia o tal pinheiro assobiador. Não foram poucas as noites que meus pais devem ter ouvido o assobialino justificar seu nome. Passou o tempo e o esclarecimento achou por bem chamar o assobialino de Pinus Iliote (se bem que eu até tenho dúvidas sobre esse nome). Uma injustiça diante da poesia de assobialino. Restou a palavra. A árvore, minha mãe mandou eu cortar. Ela botava em risco a casa quando os ventos uivantes davam as caras.
A época do pão-de-bico eu não peguei. Meus irmãos passaram a infância comprando o tal de pão-de-bico. Era o pão francês grande. Mas eu só conheci o dito cujo por esse nome besta depois de grande. Pra mim, sempre o foi o pão d’água. Meus irmãos acreditam que pão-de-bico tenha sido mais uma reparação à língua portuguesa que não oferecia o termo apropriado àquele pão tão sem graça e que só se notabilizava pela forma bicuda das extremidades.
Meu pai não é um biólogo, tampouco se ressente disso. Isso, de forma alguma, o tornou incapaz de reconhecer uma nova espécie de ave azul com um bico semelhante a uma caturrita (esse bichos parecidos com cocotas). O animal inominado foi batizado como quiu-quiu. O nome reproduzia onomatopeicamente o “canto” da ave. O nome se espalhou pelo Porto das Mesas – o habitat onde a ave “rara” foi avistada pelo exímio observador da natureza. Tempos depois algum sujeito sem a capacidade de criar o seu próprio mundo desaconselhou o nome de quiu-quiu e veio com algum outro nome creditado como o verdadeiro. Ignoro.
Há, também, as palavras incapazes de sozinhas darem conta da multiplicidade dos usos de objetos corriqueiros. Assim como o esquimó vê e nomeia uma infinidade de brancos, o marceneiro – profissão do meu pai – vê seus móveis repletos de possibilidades lingüísticas. A palavra prateleira é usualmente aplicada para servir de base para objetos ou separação horizontal em balcões, estantes, armários e mais um monte de móveis. Serve também para colocar pratos e aí entra a solução lingüística do meu pai. Prateleiras servem para sustentar pratos e parteleiras servem para partir, separar. Há uma coerência etimológica. Acredito.
Há mais uma penca de peixes que, provavelmente, só a minha família deva conhecer pelos nomes que conhecemos. Não sou o Amós Oz e nem meu pai é o pai dele e nem por isso deixamos de ter um certo hebraico falado numa certa casa basca ali pelo Bom Jesus.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
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Um comentário:
Isso é muito bom.. gostei! Ah!!! um belo personagem também... pode-se adequá-lo a qualquer contexto...
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